João no trem da imaginação
“Estou indo para a casa da vovó. Domingo voltarei. Amo vocês, João.”
O garoto deixou o bilhete sobre a mesa, onde sabia que, mais tarde, seus pais o encontrariam. Eles já haviam autorizado o filho a passar o fim de semana na casa da avó Laila. Ele, então, ajeitou a mochila e partiu rumo ao seu destino. João era um garoto de 13 anos que gostava muito de aventuras e novidades. Sua família morava em um sossegado povoado que ficava há alguns quilômetros de uma colina famosa por sua vegetação rasteira e atapetada, salpicada de árvores com flores coloridas, além das incríveis revoadas de pássaros que chamavam a atenção de qualquer que por ali passasse. O garoto já estava acostumado a ir lá, pois a avó escolhera justamente o topo desta colina para fixar sua residência.
Desde pequeno, João sempre passava as férias e feriados prolongados na casa da avó, divertindo-se nos jardins e ouvindo as histórias incríveis que ela lhe contava. Mas aquele dia não era feriado nem muito menos férias. Era uma sexta-feira qualquer, porém, mesmo assim, João precisava ir para lá, pois a avó o havia chamado com urgência.
Chegando ao seu destino, observou feliz aquela imensa casa feita de pedras claras que refletiam a luz do sol, fazendo-a brilhar como a lua em um dia claro de luar. Como ele amava aquele lugar! Era como um universo mágico onde ele podia ser e fazer o que quisesse. Vovó Laila veio correndo ao encontro do neto no jardim. Abraçou-o e, sem delongas, disse a João:
– Meu menino, chegou o dia! – sua voz era de muita empolgação.
– Dia do que vovó? – João perguntou curioso.
– Dia em que sua imaginação irá ganhar vida! – ela exclamou com um brilho nos olhos – São seis horas, estamos bem no horário!
– Mas como ass…
João não pôde terminar a frase, pois um apito alto abafou sua voz. Olhou para o lado e viu trilhos de trem bem no meio do gramado da avó. Logo em seguida ouviu uma freada brusca e escandalosa. O garoto não acreditou em seus olhos. Parada bem ali, em sua frente, jazia a locomotiva de um trem a vapor, soltando fumaça e fazendo seu barulho característico.
– Uau, o que significa isso? – perguntou o menino.
– Significa que vamos dar um passeio e tanto! Este é o Trem da Imaginação! Eu o chamei. Vamos logo, não temos tempo a perder. – a avó pegou o neto pelo braço e os dois subiram no trem. Um longo apito soou e a locomotiva seguiu em frente mergulhando em uma neblina colorida.
– João, este é o trem das viagens incríveis. Somente os aventureiros da fantasia viajam nele. Eu mesma já fiz muitas viagens maravilhosas. Sua imaginação é que vai conduzi-lo. Deixe-a levá-lo para onde quiser. Eu serei sua maquinista e cuidarei para que fique bem. Mas só pode permanecer uma hora em cada lugar, ok?
– Ok, vovó!
João estava achando aquilo incrível e surpreendente. Tratou então de fechar seus olhos e… partiu!
O trem avançou rapidamente por alguns minutos e, então, freou devagar até parar totalmente.
João desceu da máquina e olhou em volta. “Que lugar era aquele?”, pensou. Tudo era tão colorido e vívido como se estivesse dentro de um livro de histórias. O céu azul parecia um quadro que acabara de ser pintado cuja tinta ainda estava fresca. Sentiu um aroma adocicado, parecendo que um enorme bolo de baunilha estava sendo assado, espalhando seu cheiro por todo lugar. Ele reparou que muitos animais andavam, voavam ou corriam em todas as direções. Eles tagarelavam bastante, fossem sozinhos ou uns com os outros. João perguntou:
– Vovó, onde estamos?
– Que coincidência incrível! Esse foi o primeiro lugar que visitei também, há anos atrás! Veja todos estes animais, este é o mundo das Fábulas! Parece que você tem a quem puxar, meu neto!
– Uau, que legal! Vamos lá ver?
– João você vai sozinho, eu fico no trem. Este passeio é seu. Mas quando soar o apito, você tem que voltar imediatamente porque o trem já irá partir.
João concordou e seguiu em frente abismado com toda aquela exuberância. Chegou perto de uma árvore de pêssegos e apanhou um para provar. Era delicioso. Após comer da fruta avistou um grupo de coelhos que conversavam animadamente e se dirigiu até eles:
–Olá! – disse o garoto simpaticamente.
Os coelhos olharam para João com curiosidade, pois não era comum verem humanos naquele mundo.
– Você é novo aqui? – perguntou o coelho mais alto.
– Sim, vim naquele trem que está ali. Este lugar é incrível!
Todos eles olharam e viram a máquina inusitada.
– É, eu o vi chegar tão de repente – disse novamente o coelho. – Esse tal trem é rápido, hein?! Não deve ir muito longe…
– Pelo contrário, é rápido e viaja longas distâncias! – respondeu João simpaticamente.
– Não pode ser. Você tem certeza disso? Não está querendo nos enganar, né?
– Não, claro que não. Eu falo a verdade, eu vim de meu mundo para cá em poucos minutos.
– Ah, eu sabia! Sabia! – disse o coelho. – Garoto, você é demais!
– Como assim, sabia o quê? – João questionou confuso.
– Sabia que não é só devagar que se vai ao longe! Rápido também se vai!
Todos os coelhos começaram a rir e conversar euforicamente.
– É verdade, – disse outro coelho – a turma das tartarugas gosta de zombar da gente porque elas vão mais longe. Agora temos a prova!
Os outros concordaram veementemente dizendo “é isso mesmo”, “temos a prova” e saíram atrás dos répteis para a desforra.
João, dando risada pela animação dos coelhos, seguiu em frente. Encontrou um grupo de formigas que estavam prestes a saborear seu almoço: bolinhos de amora.
– Olá, formigas, eu sou João. Estou dando um passeio em seu mundo.
João se sentou ao lado delas, o que as fez esboçar uma cara de poucos amigos.
– Olha aqui, se você veio pedir para comer junto conosco, pode esquecer. Quem não trabalhou não vai comer.
– Ah, eu até queria um pedaço, mas tudo bem. Vou ficar só observando.
Subitamente, ao lado de João uma voz rouca e gutural disse:
– Esses bolinhos não parecem nada bons mesmo, não é? Devem ter um gosto horrível.
O garoto se virou e deu de cara com a raposa que esboçava um ar de desdém. Ele educadamente se dirigiu a ela:
– Ah, para mim eles parecem estar deliciosos. Mas se eu não posso comê-los, tudo bem. Minha avó sempre me diz que nem sempre a gente tem o que quer.
A raposa não gostou da resposta, pois esperava que o garoto concordasse com ela em desdenhar o quitute já que não podia comê-lo. Mas aquele choque de opinião a fez reconsiderar:
– É… talvez eles sejam bons mesmo. Quem sabe outro dia eu possa comê-los. Mas hoje não quero.
João viu a raposa se afastar meditativa e se empertigar pelo meio das árvores. Logo ela avistou um corvo que estava pousado em um galho com um queijo no bico e foi lá conversar com ele.
João voltou sua atenção para as formigas e, então, sentiu fome. Lembrou-se de um chocolate que havia trazido no bolso. Pegou-o e começou a comer. As formiguinhas sentiram aquele cheiro delicioso e não resistiram:
– O que é isso? – uma pequenina perguntou.
– Isso? É só um chocolate. – e deu mais uma mordida que estralou nos dentes.
– Hum, o cheiro é delicioso. – comentou outra formiga.
– Puxa, desculpe minha falta de educação. Vocês querem?
– É… bem, nós não trabalhamos por ele, então não podemos comer…
– Ora essa, claro que podem! Não há nada de mal em repartir comida com os outros de vez em quando. Tá certo que não podemos incentivar a preguiça, mas existe também o altruísmo.
– Existe o que?
– ‘Altruísmo’ é fazer o bem para o outro, mesmo que ele não mereça.
As formiguinhas ficaram pensativas por alguns instantes, refletindo sobre aquilo.
– Você está certo, João. De agora em diante, iremos praticar esse altruísmo.
João deu um largo sorriso e ofereceu o resto de seu chocolate a elas que comeram até se lambuzar. Agradeceram muito a ele e repartiram seus bolinhos também.
– Vamos levar um pedaço para nossa companheira, a cigarra? – sugeriu uma formiguinha e as outras concordaram.
Nessa hora João ouviu o apito do trem.
– Nossa, preciso ir!
Todos os animais também ouviram e se aproximaram correndo do trem para observar a partida:
– João, volte mais vezes para nos visitar. – gritou um dos coelhos.
– E traga mais chocolates – completou a formiguinha
– Pode deixar pessoal! Até mais!
João subiu no trem e a avó Laila acelerou, mergulhando na neblina colorida rumo à próxima parada. O garoto nem teve tempo de contar a aventura à avó, pois sua imaginação já correu solta. Ficara muito animado com sua primeira aventura. O trem parou e ele desceu novamente.
Olhou em volta e viu um mundo que parecia ser feito de letras. As árvores eram grandes “I”s marrons com várias letras penduradas nos galhos. Os arbustos eram na forma de “O”, também com o alfabeto todo grudado neles. Os rios eram “S”s de cor azul. Meninos e meninas da idade de João caminhavam com muitos livros nas mãos. Eram todos sorridentes e animados e se movimentavam com muita leveza e como se estivessem ensaiando passos de dança. Vestiam-se com roupas coloridas e seus cabelos também tinham cores inusitadas como roxo, azul ou verde.
Uma garota com um vestido florido, segurando um caderno e uma caneta, se aproximou de João. Ela estava admirando uma ave e anotando algumas coisas em seu caderno quando notou o garoto olhando ao redor como se procurasse por algo ou alguém e percebeu que ele não era dali. Então disse:
– Seja bem-vindo ilustre visitante!
O que o traz a este mundo distante?
– Eu estou andando de trem com minha avó. Que mundo é esse? – perguntou João muito interessado.
– Ah, você está no mundo da Poesia.
Posso mostrá-lo a você como cortesia.
– Puxa, obrigado. Eu quero sim.
Muitos dos livros que a avó lera para ele desde pequeno eram de poesias para crianças e ele adorava. Havia decorado muitas delas e gostava de recitá-las quando recebiam visitas em sua casa. Quanto mais praticava essa memorização, mais facilidade tinha para decorar todas as outras coisas, o que deixava todos admirados.
– Meu nome é João e como você se chama?
– Ah, eu me chamo Cecília.
Podemos seguir por esta trilha?
Cecília conduziu João por um caminho cheio de pessoas circulando. Elas conversavam alegremente e as palavras lhes saiam como canções. Ele conheceu o Manuel, a Coralina, o Mário e outros personagens deste mundo tão musical.
Eles lhe ensinaram a admirar cada pequeno detalhe e captar tudo com emoção. Cecília lhe mostrou um truque:
– Contemple atentamente esta flor!
E depois feche os olhos, por favor!
A garota apanhou um punhado de letras em um arbusto que estava ao seu lado e as colocou nas mãos de João.
– Deixe vir da flor a emoção,
E então espalhe as letras no chão.
João fez conforme Cecília lhe falou e quando abriu os olhos o que viu não foram letras embaralhadas, mas uma frase legível e completa:
“Sou bela e perfumada e por todos admirada”.
João, é claro, quis repetir o truque outra e outra vez. Contemplou um pássaro, uma árvore, um caracol, uma folha amarela. De cada um deles veio uma frase encantadora.
João estava achando espetacular a forma com que todos falavam rimando. Por um momento, até achou que era um peixe fora da água, mas o povo de lá era tão simpático que não tinha com não se sentir à vontade. Foi o Mário que lhe explicou como fazer:
–Se falar com seu coração,
Dos lábios sairá uma canção.
João estava muito contente por conhecer estas pessoas tão especiais. Nesta hora ouviu o apito do trem e disse:
– Minha vó está me chamando.
Então, preciso ir andando.
Foi um prazer estar aqui com vocês.
Espero poder voltar outra vez!
Todos aplaudiram e celebraram a primeira rima de João. E ele mesmo deu risada e acenou para todos. Subiu novamente no trem e encontrou a vovó:
– E como foi? – a avó perguntou.
– Esse mundo é muito legal!
Eu achei tudo fenomenal!
A avó deu risada e abraçou o neto. Partiram, então, para a próxima parada. A avó disse a João que seria a última visita desta viagem e, em seguida, voltariam para casa.
O trem parou e João desceu. Sentiu uma leve lufada de vento ao seu lado. Alguém havia passado tão rápido por ali que quase lhe deu um esbarrão.
– Desculpe, estou atrasado! – disse um rapaz ao olhar para trás, ainda correndo.
João caminhou um pouco e, subitamente, ouviu alguém dizendo ao seu lado:
– Vi você chegar aqui. Eram exatamente 10 horas 45 minutos e 23 segundos.
– Como é? – João se virou e viu um senhor com cabelos e bigodes brancos.
– Sou Pitágoras, muito prazer. Veio de outro mundo, não é?
– Sim, estou de passagem…
– Pois chegou na hora certa! Minha esposa está preparando um lanche. Acabei de ir comprar 250 gramas de farinha que faltavam para o bolo que ela está fazendo. Vai dar doze pedaços, mas ela e eu só comemos três cada um, então, se você quiser pode se juntar a nós.
– Claro que sim. Muito obrigado. Eu sou o João.
Os dois seguiram em direção à casa de Pitágoras e João foi reparando à sua volta. Pela rua, havia muitos relógios pendurados em postes e totens com calculadoras e computadores. Os carros eram quadrados, exceto pelas rodas e circulavam ordenadamente. A pintura das casas e prédios eram números ordinais, romanos, gregos etc, de várias cores e tamanhos.
Chegaram à residência e João conheceu Théa, a esposa de Pitágoras, que era muito gentil e hospitaleira.
– João, vou preparar um suco. – disse a esposa – Quantos litros você vai beber?
– Não sei bem, acho que meio litro está bom.
Ela foi ajeitar o lanche e os dois ficaram conversando. João, curioso perguntou:
– Vocês calculam tudo?
– Ah, tudo não, pois este é um número infinito, não tem como calcular. Calculamos as coisas do dia a dia, afinal este é o mundo da Matemática!
– Mas há coisas que não dá para calcular, não é? Uma conversa como esta, por exemplo.
– Claro que dá. Todas as coisas são números. Você já falou 246 palavras e eu 278. Gastamos 32 minutos desde que nos encontramos. Eu andei 78 passos e você 91 para chegarmos aqui.
João ficou impressionado. Conversaram bastante tempo e João contou de sua viagem de trem. Pitágoras fez todos os cálculos para explicar como este deslocamento era possível.
João achou que era o momento de ir. Então, ele se levantou e deu um abraço em Pitágoras. Este se espantou e disse:
– O que foi isso?
– Ué, isso é um abraço. Fazemos quando gostamos do outro. Agora um desafio para você, como se calcula isso? – João sorriu arqueando as sobrancelhas.
– É… bem… Deixe-me ver. Demorou 11 segundos.
– Mas esse foi só o tempo que durou. E quanto ao sentimento, à amizade?
– Não consigo medir isso, é impossível. Peço que me dê a resposta. Falar é semear e escutar é recolher.
– Na vida nem tudo é exato e pode ser calculado. Algumas coisas só precisam ser vividas.
– Ótimo, disse muito em poucas palavras. Quero agradecê-lo por repartir comigo sua sabedoria, caro João.
João ouviu o apito do trem e se despediu. Pitágoras o acompanhou até lá.
– Até mais, meu amigo, volte quando quiser.
João subiu no trem e disse:
– Foi muito bom conhecê-lo. Sabe que matemática é minha matéria favorita?
– E como não seria? – disse o matemático cheio de si.
Quando o trem estava para partir, Pitágoras gritou:
– João, você ficou aqui exatamente 1 hora 2 minutos e 34 segundos!
Os dois riram e o trem partiu. Vó Laila percebeu a alegria de João e disse:
– Não preciso nem perguntar se gostou, não é? Hoje você experimentou o que poucos podem ter. Viajar para dentro de suas histórias e mundos.
– Foi muito legal mesmo! Mas foi a senhora quem me levou, vovó!
– Ah, não fui eu não! Eu só puxei o apito. O resto foi tudinho por sua conta. – ela sorriu despachadamente, acelerando o trem rumo à bela colina.
Os dois retornaram à casa da vó e conversaram muito sobre a viagem durante dois dias, até que chegou a hora de João voltar para sua própria casa. Ele nunca mais se esqueceria daquele dia e ainda faria muitas outras visitas aos mundos incríveis das histórias que sua avó lhe contava.